Qual a importância?
Ela estava sentada em uma poltrona de couro macio, observando a grande tela preta da televisão em sua frente. Não via essa televisão, nem a parede em que ela estava pendurada, nem o homem ao lado que estava obviamente irritado por estar falando e não ser ouvido.
Naquele momento, sentada naquela poltrona, ela pensava se toda a sua vida tinha algum sentido. Pensava se suas experiências, se os seus desejos, se tudo aquilo tinha realmente alguma importância.
É o que geralmente acontece com as pessoas quando veem alguém morrer.
Ela começou a ouvir o homem à sua frente, despertando de sua própria mente. Ele se acalmou um pouco ao perceber que ela agora dava atenção à ele.
— Não havia nada que você pudesse fazer, Byanca. — ele disse.
— Eu sei.
Ele se calou. Já havia lidado com pessoas que passaram por esse tipo de choque, e elas tendiam a se culpar. Byanca tinha uma expressão solene; quem a observasse agora, não imaginaria que há menos de uma hora atrás ela estava banhada em lágrimas, sofrendo pela morte da filha.
— Bem, fico feliz em saber disso — ele disse. — Mas se precisar conversar, se precisar de qualquer tipo de ajuda...
— Eu sei.
De novo, essas duas simples palavras o calaram. Ele fez um aceno de despedida e passou pela porta, com os policiais em suas costas.
— Tem certeza de que ficará bem? — Ele perguntou, apoiado na janela, com a cabeça do lado de dentro da casa, observando a mulher.
— Nunca disse que ficaria bem — Byanca respondeu, sem olhar para o homem. — Mas você pode ir.
Ele se despediu novamente e foi embora.
Byanca se acomodou mais na poltrona, e parou de repente. Deu uma gargalhada. O que é isso?, ela pensava, por que me sinto confortável nessa poltrona? Por que sinto qualquer coisa?
Ela se levantou e olhou para o crucifixo na parede. Não iria orar para Deus agora. Não que houvesse deixado de crer em sua existência; apenas deixara de se importar. Byanca deixou de se importar com tudo assim que o ladrão que invadira sua casa atirou em sua filha. Não, não foi nesse momento. Foi depois, quando seu vizinho apareceu e a disse, "Ela está morta". Bom homem, aquele. Queria que ela ficasse bem, tanto que já estava ali com ela há um tempo; era o homem que acabara de sair. Mas ele não fazia idéia do que passava na cabeça de Byanca agora. Na verdade, temia que ela talvez quisesse tirar a própria vida. Que besteira! Por que Byanca iria querer isso? Depois de sentir a dor que a morte traz, por que diabos ela iria dar tão pouco valor à vida?
Caminhou para o quarto da filha. e sentou-se na cama. Observava todos os objetos do quarto, objetos que a garota tocara naquele mesmo dia. Ela ainda mantinha a expressão solene. Seus pensamentos eram frios. Ela se perguntava se qualquer outra coisa a não ser a vida, a própria vida, tinha importância. Os amores, as dores, os desejos, os sonhos; pra quê servia isso tudo? A morte estava sempre tão próxima. Nada mais além do fato de estar vivo deveria importar.
Ela foi até a mesinha em que sua filha guardava seus trabalhos escolares. Pegou os papéis e começou a ler algumas das coisas que ela havia escrito, coisas de 4ª série. Foi folheando provas de matemática, trabalhos de história, avaliações de português, até que chegou a uma redação. Um daqueles textos que os professores mandam que se escreva, contando como foi o período de férias. Byanca começou a ler o que a filha tinha escrito.
"Nessas férias eu viajei com a minha mãe, e foi muito legal. Nós fomos para o Rio de Janeiro, e eu vi a estátua grandona do Cristo lá. Era linda. Aquela montanha grande também era bonita. Nós andamos de teleférico, passeamos pela praia e tomamos muito sorvete. Conversamos bastante também.
Eu fiquei feliz com o passeio mas mais feliz ainda pela minha mãe. Ela estava tão alegre! Não havia visto ela ficar tão feliz desde que meu pai saiu de casa. E eu acho que não teria ficado tanto se já não tivesse chorado tanto por causa do meu pai. Sabe, eu acho que é um balança. Ela ficou muio triste, e agora tinha que ficar muito feliz.
Do mesmo jeito que eu também fiquei triste, mas não sou infeliz por isso. Acho que a felicidade vai vindo aos poucos, e nós só temos que ser pacientes até que ela chegue, mesmo que alguma coisa tire ela de nós de repente. Porque ela vai chegar. Quer dizer, eu acho.
E mesmo que não chegue, qual o problema de esperar por ela? Isso é legal. Enquanto você espera pela felicidade, você é feliz! Não faz sentido, né? Mas eu acho que é assim. E a gente vai ficando feliz e triste, com raiva e sem raiva, até o dia que só ficamos felizes. E nessas férias, o passeio que eu tive com a minha mãe foi um desses momentos bons, divertidos, que fazem o resto não parecer tão ruim. Então sim, eu gostei das minhas férias."
Byanca já estava chorando. Havia lido essa redação antes, mas só agora realmente absorvia as palavras. Como era possivel que sua filha já soubesse a resposta para uma pergunta dessas, apenas uma criança? Sua filha acabara de responder seus questionamentos. Acabara, aliás, de dar um caminho à sua vida. Agora Byanca sabia o que fazer. Pois agora ela sabia que as outras coisas têm importância. Amores, dores, felicidades, tudo isso, têm importância, sim. A vida em si também, mas são essas experiências que a fazem crescer, que a fazem ter significado. E sua filha sabia disso o tempo todo.
Byanca colocou a redação de volta à mesa e foi ao telefone. Ligou para um número e pediu uma pizza. Assim que desligou, riu e se jogou na poltrona da sala. Tinha se perguntado por que o sentimento de estar confortável existia, não tinha? Pois bem, agora ela aproveitava ao máximo essa poltrona, aproveitava tudo de bom que extraía do próprio corpo, todos as gostosas sensações. Pedira a pizza para depois aproveitar o sabor, sentir queimando sua lingua. Ela aproveitaria tudo o que a vida teria para lhe oferecer.
De cima das nuvens, no lado invisivel da Terra, uma criança sorria.